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Quem Tramou o CNECV?

02.10.19

Crónica de segunda-feira pra o "i" .

CNECV (quarto mandato)

“Toda unanimidade é burra” e, no caso do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), seria estranha e até vergonhosa, pelo que reconforta saber que os pareceres sobre a “gestação substituição”, as  “declarações antecipadas de vontade”, o “diagnóstico genético pré-implantação”, o “transplante de órgãos”, a “clonagem humana” ou a “investigação em células animais” foram aprovados com pelo menos duas declarações de voto vencido, sem despertar grande alarido. Como se explica então que seja o parecer sobre o financiamento do custo dos medicamentos, aprovado sem declarações de votos de vencido, a manchar a imagem do CNECV?  Será que houve um conluio para prejudicar quem só pode recorrer ao SNS?

 

Quem é contra o parecer deve saber defender o “encarniçamento terapêutico”, por muitos considerado eticamente reprovável, não só por prolongar o sofrimento do doente, como por poder comprometer o tratamento de pessoas mais necessitadas quando os recursos são limitados. Esta discussão decorre nos países ditos civilizados, mas não é difícil perceber  que descambe num país de pantanas, com o SNS sob ataque e um governo que já só tem a confiança dos seus cúmplices.  É verdade que não ajudou a entrevista do presidente do CNECV, Miguel Oliveira da Silva, cuja sensibilidade social levanta a suspeita de que antes estivera a beber um puro malte com António Borges. E também não ajudou o “processo de averiguação” da Ordem dos Médicos aos clínicos do CNECV - que não vai dar em nada, pois já cumpriu os objectivos de capitalizar a indignação popular e de ajuste de contas entre rivais de profissão.

 

É um erro considerar  o CNECV um desses grupos de trabalho inventados para dar legitimação técnica a interesses obscuros. E é um erro maior não discutir em público e sem estados de alma um problema incómodo, pois este não desaparecerá e as soluções não serão melhores, mas apenas menos transparentes.  

 

Adenda: editorial do Público, hoje: "O parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida, por polémico que seja, deu o primeiro passo num debate sério. E fê-lo com uma argumentação cuidada e sólida, como se comprova lendo o documento (está na Internet) e não só os resumos dele feitos. Fala em "racionamento" de custos, mas também, em casos terminais, em substituir o "racionamento implícito" ("eticamente e politicamente inaceitável") por "uma escolha e racionamento explícito e transparente, em diálogo com os cidadãos", para "que assim se mantenha intacta a confiança dos doentes nos profissionais de saúde e no SNS". Disto retirou a Ordem dos Médicos a ideia de uma ofensa ao código deontológico, pelo que ameaçou investigar e processar os médicos que subscreveram o parecer, entre os quais dois antigos bastonários. Pensar a saúde passou a ser um delito de opinião, punível? A Ordem dos Médicos, incrivelmente, parece achar que sim. Até onde levará esta sua cruzada?"

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Metáforas zoológicas em tempo de crise

26.09.19

Crónica de segunda-feira pra o "i" . O começo da versão impressa e online é incompreensível por ter um fragmento de texto que não sei de onde veio. Aqui apresento a versão corrigida.

 

fonte

 Terminada a fantasia da “equidade na repartição dos sacrifícios”, voltam as alusões à natureza. É uma tradição, da “arraia-miúda” (Batoidea) na crónica de D. João I, de Fernão Lopes, ao “quem se lixa é o mexilhão [Mytilus galloprovincialis]” do televisionado Marcelo. Curiosamente, o apelido de Passos Oryctolagus cuniculus tem sido poupado, talvez por se ter transmutado em batráquio (Ranidae) ferido por um Portas (Scorpiones) incapaz de contrariar a sua natureza.

 

Menos inócua do que frases populares e fábulas é a moda da psicologia evolutiva e das neurociências, sobretudo quando pede o que talvez a natureza não possa dar, num mundo já sem divindades e com o discurso político a radicalizar-se. Por exemplo, nas experiências recentes em que um macaco amua quando não é tratado como o macaco vizinho, é tentador ver uma prova da naturalidade do “sentimento de injustiça”, mas será esta necessária para legitimar a conclusão de que um bebé nascido na Quinta da Marinha não precisa dos apoios que devemos a um bebé nascido num bairro social?

 

A direita usa a selecção natural de Darwin para banalizar a “sobrevivência dos mais fortes” e o “egoísmo”, e a esquerda para frisar o valor da diversidade e da cooperação. Nas comunidades de outros primatas, há quem encontre os fundamentos da nossa moral ou da nossa irremediável agressividade. Não há só ciência nisto, há também ideologia. Mas se todos parecem encontrar o exemplo que lhes convém, o exercício é irrelevante para o modo como vivemos.

Se quem julga que inventámos já o melhor sistema político possível tiver razão, não estamos só órfãos de  Ciência, como  no “fim da História”. E se sabemos já tudo o que precisamos de saber, não questionemos o óbvio: que a transferência de riqueza (no sentido certo) em que se baseia o Estado Social é a única forma de minorar o efeito da lotaria do nascimento.

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Os números de 15/9

18.09.19

Crónica para o "i".

Foto de Rita Neves

 

Sabemos contar os pinguins da Antártida a partir do espaço. Não sabemos contar os desempregados, crianças, estudantes, domésticas, bolseiros, funcionários públicos, trabalhadores a recibo verde, de “pequenas e médias empresas”, de grandes empresas, reformados e um ou outro turista levado nas enxurradas de gente do passado sábado.

 

A paz social acabou e não está em questão a importância dos rios de gente, nem a força de um “roubaram- -me a juventude na guerra e agora o ordenado na reforma”. Aliás, sem que esta discussão de números seja sobre o sexo dos anjos, reconheça-se que tem algo de campeonato de pirilaus. Mas com tanta sondagem à boca das urnas, tese de jornal da noite por flutuações de décimas nos índices de criminalidade e tanto inquérito para medir a “felicidade” dos povos, é frustrante que a histeria de mensuração não nos dê ainda um valor e incerteza associada para as manifestações, em vez dos tradicionais dois delírios em forma de número fornecidos por organizadores e as forças da ordem. Reparem: se é verdade que só cegueira ideológica ou incapacidade em lidar com muitos zeros levou um indivíduo a escrever que em Lisboa se manifestaram 10 000 pessoas, duvido também que 1 milhão de pessoas tenha vindo à rua no país inteiro. Quantas foram? Ninguém sabe. Basta. Basta também de imprecisão.

 

Com boas imagens, este exercício seria uma brincadeira de miúdos (ver 1,2,3,4,5). Mas se forem miúdos universitários ficarei mais descansado. Nerds do país, uni-vos! Não serão os jornalistas a apurar estes números e estamos a perder uma oportunidade para testar e divulgar metodologias, métodos de amostragem, programas de reconhecimento de padrões, etc. Arranquem com um projecto extracurricular, arregimentem voluntários entre colegas, desenrasquem-se para obter câmaras de filmar, etc. , e preparem- -se para respostas em tempo real. A 29 de Setembro temos outra “manif”. Organizem-se e aparecerão na TV.

 

Adenda: as ferramentas mais simpáticas para fazer estimativas grosseiras são as que medem áreas em mapas (esta é das melhores porque o mapa aparece como uma fotografia); também há versões que funcionam nos telemóveis. Estimada a área real, o que pode ser mais complicado do que parece, a arte passa a estar:

 

1) na escolha da densidade (ou densidades, porque é possível e faz sentido decompor a área em parcelas com diferentes densidades) - 2 pessoas por m2 na Praça de Espanha e 0.5 pessoa/m2 nas artérias de acesso?  Ajuda olhar com atenção para os detalhes nas fotografias aéreas, nomeadamente se forem fotos de Lisboa e não de Istambul.

 

2) no cálculo dos fluxos (quantos entram e quantos saem por unidade de tempo). Para isso é importante olhar com atenção para os vídeos que mostram as pessoas em movimento nas avenidas e recolher testemunhos.

 

 

 

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Ideias com mais vidas do que os gatos

10.09.19
Crónica para o "i".


A apelativa ideia de  “ADN lixo”, sempre reciclada como polémica, acaba de morrer mais uma vez.


Imaginar o genoma composto por uma percentagem elevadíssima de material que não serve para nada seduz pela surpresa, porque não pensávamos ir encontrar desperdício na  “enciclopédia” que guarda a informação que nos constrói. E serve para irresistíveis exercícios de falsa autodepreciação: “somos lixo”, com o subentendido “porém, espectaculares”.


Ao contrário do que se escreveu após a sequenciação do genoma humano, termos apenas 2 vezes mais instruções para proteínas (os genes) do que os insectos que exterminamos sem qualquer rebate de consciência só foi surpreendente para quem desconhecia as estimativas certeiras feitas 3 décadas antes. Foi nesse contexto que Susumu Ohno, um geneticista de ideias fecundas, em 1972 chamou “junk DNA” às vastas regiões do genoma incapazes de codificar proteínas, que para ele eram sobretudo fósseis moleculares, ou seja, marcas deixadas pela evolução nas nossas células, tal como os vestígios de fauna e flora ancestrais em rochas sedimentares. Por ser tão bonita, a ideia tornou-se recorrente, mas sempre para que morresse às mãos da descoberta seguinte. Houve algumas nas últimas décadas.


Assim, há algo de déjà vu  e de  “boa imprensa” na “surpresa” com que agora foi divulgada a catadupa de trabalhos de um consórcio de cientistas que tenta perceber como a informação genética é gerida (1,2,3). Porque a conclusão de que a maior parte do ”ADN lixo” tem um papel na regulação da expressão dos genes confirma a opinião já dominante na comunidade científica, como – de resto - tende a suceder com os estudos que movimentam grandes equipas e muitos milhões . Por ser preciso criar tensão dramática, lá se ressuscitou de novo a velha ideia do grande Ohno. E como ainda ninguém sabe como se faz uma célula a partir de um conjunto de instruções, suspeito que esta não foi a última vez.


Não cheguei a incluir na crónica o capricho principal para a escrever: ver  "Susumu Ohno" impresso em folhas de jornal. Volto aqui quando tiver tempo.

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Vasco M. Barreto

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